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Jornalismo científico e política em tempos de pós-verdade

Acompanhar o que se passa em Brasília tem sido uma maratona para o povo brasileiro, que dirá para os jornalistas que seguem o dia-a-dia dos três poderes de perto. Um mar de escândalos, acusações e tweets insólitos têm oferecido dificuldade extra para que o governo se firme sobre os próprios pés.


Dois anos depois da eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos o cenário não tem sido muito diferente. A cobertura de política — não apenas econômica e social, mas também a científica e ambiental — tem rendido várias lições a repórteres, editores e especialistas em política pública no país.


Pensar estas lições — com as quais os colegas brasileiros, todos nós, podemos aprender bastante — foi a tônica do quinto Kavli Symposium de Jornalismo Científico, ocorrido em Washington entre 18 e 20 de fevereiro. Sob a temática “Jornalismo Científico e Política”, o evento reuniu editores, repórteres e especialistas em política científica e jornalismo de ciência de diferentes partes do mundo.


A dificuldade em acompanhar uma administração de governo caótica deu o tom para o início das discussões. David Malakoff, sub-editor chefe da revista Science (EUA), pontuou que a atual administração “talvez seja a mais desorganizada” que cobriu em toda sua carreira. A cobertura tem sido um desafio especialmente significativo por causa da falta de transparência nas decisões do Executivo, e que, por isso, a comunidade científica costuma ficar na defensiva, esperando sempre o pior. “Mas nem tudo são planos nefastos que vêm de Trump. Algumas coisas são, às vezes, apenas resultado de funções de rotina”. Porém, dado o cenário atual do país, “a comunidade sempre presume o pior”.


Na mesma linha do argumento de Malakoff, Lauren Morello, editora-chefe para as Américas na revista Nature (Reino Unido), observou que, em meio a todos os acontecimentos e controvérsias do governo atual, “a incerteza da administração é a notícia principal”. A presidência não segue as regras do jogo como governos anteriores. No entanto, continua sendo muito importante para jornalistas não perder o foco na escala de cinza entre preto e branco. “Sempre tento olhar para grupos diferentes na administração Trump — já fizemos histórias sobre cientistas que votaram em Trump, sobre pesquisadores que são republicanos, mas não fazem parte da base de eleitores do presidente. Nem todos os cientistas são democratas e nem todos odeiam Trump”.


Neste sentido, “há diversas atitudes em grupos diferentes. Algumas temáticas em ciência estão fortemente ligadas à política governamental e outras nem tanto”, observou Cary Funk, diretora de pesquisa em Ciência e Sociedade do Pew Research Center (EUA). Mas em um período em que a polarização política é regra, e “as pessoas não sabem muito diferenciar fato de opinião”, é preciso “desembrulhar” a ciência para as pessoas e mostrar como as mudanças climáticas ou uma descoberta afetam a vida dos leitores. Mas não é só isso. “Quando um avanço biomédico é atravessado por questionamentos de ordem religiosa, por exemplo, é preciso tentar entender o porquê de as pessoas serem céticas, ouvi-las e contextualizar o tema com fatos”.


Outro tópico interessante em questão foi a diferença entre política pública (policy) e política de governo (politics). Enquanto a política pública é algo mais perene por se tratar de decisões de Estado, a política governamental tem muito mais a ver com “o poder e com o que as pessoas dizem”, observou Malakoff. Um consenso na reunião foi de que é preciso saber diferenciar uma coisa da outra para que a cobertura não perca o foco do que é o mais importante numa história. “É importante focar não apenas no que as pessoas dizem, mas no que elas fazem”, completou Josh Fischman, editor sênior da Scientific American (EUA). Ele lembrou que, durante a campanha eleitoral de 2016, repórteres da revista perguntaram aos eleitores sobre quais temas eram mais importantes para eles a fim de ajustar o tom da cobertura que fariam.


O papel do jornalismo na formulação de política científica baseada em evidências foi a chave das discussões do simpósio. Em um cenário em que “fatos alternativos” têm relevância na arena pública, voltar aos fundamentos do jornalismo sério e investigativo nunca foi tão importante — em especial quando o grupo que dita as regras nem sempre entende a importância de políticas baseadas em evidências. “Quem elabora política pública precisa confiar no que jornalistas escrevem para fazer seu trabalho”, pontuou Kei Koizumi, pesquisador visitante de Política Científica da Sociedade Americana para o Progresso da Ciência (AAAS). Jornalistas lêem os artigos e destacam o que é mais importante, “dando informações sobre as quais políticas públicas poderão se basear — e dão a conhecer novas descobertas e uma ideia de quem são as instituições principais por trás da ciência que é feita”, completou ele. “São os jornalistas que dão voz ao peso de determinadas políticas sobre indivíduos e comunidades — e são estas histórias que fazem o impacto parecer mais real para quem formula política pública”.


Um exemplo são os efeitos das mudanças climáticas, que serão e já são sentidos mais profundamente por minorias e pessoas mais pobres. Neste sentido, há algumas perguntas que os jornalistas precisam se fazer para ressaltar as dimensões humanas da ciência que está em questão na cobertura, observou Koizumi. “Como a ciência pode ser mais participativa? Quais são as soluções que comunidades sendo afetadas pelas mudanças climáticas estão desenvolvendo?” Outras histórias precisam ser melhor contadas. “O trabalho feito no LIGO (observatório que detectou ondas gravitacionais em 2016 e rendeu um Nobel de Física aos líderes do projeto no ano seguinte) não tem apenas a ver com artigos publicados e instituições. Tem a ver com os estudantes que tiveram suas vidas mudadas por conta daquela pesquisa e com as pessoas da Louisiana que trabalharam naquele observatório”.


Das muitas conversas que aconteceram, ficou evidente que a importância dos fatos apurados com rigor e de dar contexto ao contar uma história nunca saem de moda e continuam a ser práticas relevantes para o bom jornalismo. Foi interessante pensar, também, que os jornalistas de ciência precisam trabalhar com seus colegas em outras editorias para tentar mostrar onde está conhecimento científico por trás de cada história. Afinal, estatísticas sobre economia e estudos feitos em antropologia, sociologia e psicologia também são ciência. Elas são, afinal, conhecimento baseado em evidência — e evidências são importantes demais para ficar restritas (ou escondidas) apenas à seção de ciência nos jornais, especialmente nos tempos em que vivemos.


Para trazer de novo Kei Koizumi: “O jornalismo científico não está em todos os lugares, mas precisa estar em lugares diferentes dos em que está agora; em que locais as conversas poderiam se beneficiar com o jornalismo científico?”.


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Meghie Rodrigues é pesquisadora de conteúdo do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e diretora de integração nacional da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência.


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