top of page

Comunicação em população, uma nova abordagem para o jornalismo no Brasil

por José de Paiva Rebouças e Ricardo Ojima


Temas populacionais sempre foram pauta jornalística. Seja em manchetes sobre migração, fecundidade, envelhecimento ou acesso a políticas sociais, a imprensa mobiliza dados demográficos diariamente, ainda que nem sempre de forma consciente. No entanto, a maneira como esses assuntos são interpretados, narrados e distribuídos revelam uma fragilidade estrutural: falta um modelo produtivo que qualifique o jornalismo como mediador entre os dados populacionais e o debate público.


Análise de dois conteúdos jornalísticos recentes, baseados em dados do Censo Demográfico de 2022, ajuda a ilustrar os efeitos da ausência de uma mediação qualificada sobre os temas populacionais. A reportagem “Número de filhos por mulher cai à mínima histórica e brasileiras se tornam mães mais tarde”, publicada no site do jornal Folha de S. Paulo em 27 de junho de 2025, teve 33 comentários, entre os quais pelo menos 12 reproduziram argumentos malthusianos, naturalizaram a desinformação ou celebraram a redução populacional como sinal de progresso. Já a matéria “Número de imigrantes quase triplica no RN em 12 anos”, publicada no Instagram do jornal potiguar Tribuna do Norte em 7 de julho de 2025, recebeu 36 comentários. Desses, ao menos 13 expressaram formulações xenofóbicas, generalizações envolvendo o Bolsa Família ou interpretações moralizantes sobre fecundidade.


Em ambos os casos, expressões extraídas dos comentários de leitores – como “chega de gente no mundo”, “venezuelanos com cinco filhos” ou “menos pessoas no Bolsa Família” – evidenciam como interpretações enviesadas persistem mesmo diante da ampla divulgação de dados oficiais. Mais do que opiniões individuais, esses enunciados revelam um vácuo interpretativo que demanda atenção redobrada tanto da comunidade científica, responsável por tornar a demografia mais acessível e significativa, quanto do jornalismo, que precisa assumir um papel mais crítico e rigoroso na mediação das informações populacionais. Para ambos os campos, o comportamento dos leitores deve ser interpretado não apenas como sintoma, mas como oportunidade de reflexão, engajamento e renovação das práticas de comunicação pública, especialmente à luz das transformações demográficas que o próprio IBGE tem revelado.


Cabe destacar que os dados divulgados pelo IBGE com base no último Censo confirmam uma transformação demográfica profunda e urgente, já há muito tempo debatida entre os demógrafos. A taxa de fecundidade total caiu para 1,55 filhos por mulher no Brasil, número bem abaixo do nível de reposição populacional de 2,1. A região Norte ainda apresenta um índice ligeiramente superior, mas também abaixo da reposição, com 1,89 filhos por mulher. Além disso, a idade média ao ter filhos passou de 26,3 anos em 2000 para 28,1 anos em 2022, e o percentual de mulheres entre 50 e 59 anos sem filhos subiu de 10% para 16,1% no mesmo período, evidenciando uma postergação consistente da maternidade. (1)


Esses indicadores não apenas confirmam que o Brasil já vive os efeitos do envelhecimento populacional, como mostra o aumento do número de centenários e a queda da fecundidade em todas as regiões, mas também alertam para impactos significativos na sustentabilidade do sistema previdenciário, na organização da saúde pública, mas, principalmente, em uma iminente crise de cuidados. Reportar esses dados com profundidade exige mais do que apresentar números. Implica considerar seus efeitos sociais, econômicos e políticos, orientando o público sobre a necessidade de o país repensar seu modelo de desenvolvimento diante da queda na fecundidade.


A necessidade de reportar esses dados com maior profundidade, considerando seus amplos efeitos, nasce de um descompasso cada vez mais evidente entre o conhecimento técnico produzido pelos demógrafos e as formas de circulação social desse saber. Mesmo com dados amplamente disponíveis pelo IBGE ou pelos programas de pós-graduação em demografia no país, persistem interpretações distorcidas sobre a dinâmica populacional.


Embora os equívocos se manifestem com mais frequência nos comentários de leitores, também é possível identificá-los em reportagens jornalísticas. Isso ocorre não apenas por desconhecimento, mas pela ausência de pontes consistentes entre os campos científicos e a esfera pública. Afinal, é o senso comum cristalizado numa certeza secular que se materializa nas reportagens, mesmo que sutilmente.


Muitas dessas interpretações atualizam, ainda que de forma implícita, um pensamento formulado há mais de dois séculos por Thomas Malthus. Em 1798, o pastor anglicano publicou o Ensaio sobre o Princípio da População, no qual defendia uma ideia simples, mas assustadora: a população tende a crescer muito mais rápido do que a capacidade de produzir alimentos e recursos. Para Malthus, esse descompasso levaria inevitavelmente à fome, à miséria e até à morte, a menos que as pessoas tivessem menos filhos ou que as políticas de ajuda aos mais pobres fossem cortadas. Ele via a pobreza e a escassez como consequências naturais de uma população que crescia sem controle. (2)


Mesmo contestada por diversas correntes ao longo do tempo, a lógica malthusiana atravessou séculos e ainda se faz presente, muitas vezes de maneira disfarçada, na forma como o noticiário, ou seus consumidores, trata temas como natalidade, imigração, envelhecimento. O que muda é a linguagem. O que antes era chamado de “excesso populacional” ou “explosão demográfica” hoje é enquadrado como “peso fiscal”, “ameaça ambiental” ou “crise da previdência”. O raciocínio, no entanto, permanece o mesmo: culpar o número de pessoas pelos problemas sociais e econômicos, em vez de analisar as estruturas e políticas que geram desigualdade.


E essa persistência de um raciocínio enviesado, como o malthusiano, encontra eco no próprio jornalismo. Embora os temas populacionais estejam presentes no noticiário cotidiano, não há, nas redações brasileiras, uma abordagem específica ou uma especialização voltada à demografia, tampouco isso se reflete de forma estruturada na formação acadêmica. Diferentemente de campos como o jornalismo ambiental, de dados ou de saúde, os fenômenos populacionais continuam sendo tratados de forma reativa, episódica e pouco articulada, tanto editorial quanto pedagogicamente.


Para se ter ideia, mais da metade dos cursos de jornalismo no Brasil sequer explicita quais teorias do jornalismo embasam suas disciplinas, o que enfraquece a capacidade crítica da profissão frente a temas complexos. A ausência de um campo teórico mais consolidado se reflete na maneira como a imprensa lida com os indicadores populacionais, muitas vezes reforçando preconceitos, silenciando contradições e reproduzindo interpretações ancoradas no senso comum. (3)


O resultado, em parte da cobertura jornalística, revela uma oscilação entre o sensacionalismo e a tecnocracia. Simplificações alarmistas convivem com a reprodução de dados sem a devida contextualização. O jornalismo ainda enfrenta obstáculos para se afirmar como campo de conhecimento consolidado, especialmente pela ausência de práticas dialógicas entre pesquisadores, profissionais da mídia e o setor produtivo, o que limita o intercâmbio entre teoria, prática e mercado. (4) Essa limitação se agrava pela dificuldade de reconhecer e articular diferentes formas de conhecimento científico, especializado e leigo, que coexistem no fazer jornalístico, dificultando sua qualificação como prática crítica e interpretativa da realidade.


É justamente essa fragilidade, somada à carência de uma cultura demográfica disseminada, que nos impulsiona, enquanto pesquisadores do campo demográfico, a propor uma nova abordagem para ambas áreas do conhecimento: a comunicação em população (6). Embora esteja sendo desenvolvida no seio da demografia, essa proposta responde diretamente à escassez de iniciativas no jornalismo que articulam dados, sentidos e cidadania em torno da questão populacional. Mais do que um conceito acadêmico, ela visa transformar a forma como as redações lidam com temas populacionais, incentivando a criação de editorias especializadas, a capacitação contínua de profissionais e o desenvolvimento de diretrizes editoriais mais robustas para uma cobertura demográfica responsável e contextualizada.


Reforçada a partir da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994, essa perspectiva passou a ser reconhecida como instrumento estratégico para ampliar o acesso à informação e garantir direitos reprodutivos e sociais. Desde então, experiências no México (7) e, atualmente, em Cuba (6) têm consolidado esse modelo emergente, propondo que as dimensões populacionais sejam comunicadas com mais responsabilidade, criticidade e enraizamento cultural.


A comunicação em população, nessa abordagem, relaciona-se à ideia de espiral da cultura científica (5), ao fortalecer um ciclo virtuoso entre produção de conhecimento, educação pública e cidadania informada. Para que esse processo se consolide, é necessário repensar rotinas produtivas, especializações e estratégias de mediação, de modo a colocar os temas demográficos no centro da cobertura jornalística contemporânea.


Nessa perspectiva, a comunicação em população não se limita à transmissão de estatísticas, mas se configura como um processo político e simbólico, atravessado por disputas de linguagem, representações e poder (6). Essa proposta se ancora, em primeiro lugar, no jornalismo científico, tradicionalmente voltado à mediação entre saber acadêmico e opinião pública. Em segundo lugar, estabelece relação direta com o jornalismo de dados, não apenas pelo uso intensivo de indicadores demográficos, mas pela compreensão de que esses dados exigem curadoria, leitura contextualizada e compromisso com a inteligibilidade pública da informação (8).


Ao reunir números, narrativas e políticas, a comunicação em população pode ser compreendida também como uma estratégia voltada para o desenvolvimento, ao reconhecer que os processos comunicativos são fundamentais para a construção da cidadania, a formulação de políticas públicas e a mobilização social (9). Trata-se, portanto, de uma abordagem que não apenas informa, mas também envolve, emancipa e orienta decisões coletivas com base na realidade demográfica. De um lado, questiona-se a confiança excessiva em modelos matemáticos e a pretensa neutralidade na abordagem dos dados populacionais (10); de outro, ganham força interpretações que valorizam os contextos históricos e as disputas simbólicas envolvidas nas representações demográficas (11).


Este ensaio, assim como a pesquisa mais ampla à qual se vincula, constitui um esforço inaugural para suprir essa lacuna no Brasil e contribuir para o avanço dessa discussão no contexto latino-americano como reforço do que vem sendo proposto pela escola cubana (6). Construir um modelo produtivo capaz de mediar com rigor, sensibilidade e responsabilidade os sentidos da população no espaço público exige não apenas novas práticas, mas também novos enquadramentos teóricos e éticos.


Tanto a demografia quanto o jornalismo, cada qual com suas especificidades, precisam cultivar um olhar mais atento às oportunidades de renovação que surgem quando campos distintos se reconhecem como aliados na tarefa de comunicar melhor o mundo. A comunicação em população é, portanto, e antes de tudo, uma convocação. É o chamado para produzir sentido onde há ruído, debate onde há polarização e cidadania onde hoje há apenas dados. É nesse compromisso que reside sua potência transformadora.


Notas


(1)  IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2022 mostra um país com menos filhos e menos mães. Agência de Notícias IBGE, 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/43837-censo-2022-mostra-um-pais-com-menos-filhos-e-menos-maes. Acesso em: 16 jul. 2025.


(2)   GRUPO DE FOZ. Métodos demográficos: uma visão desde os países de língua portuguesa.  São Paulo: Blucher, 2021


(3)   GRADIN, J; CARVALHO, Guilherme. Quais teorias do jornalismo? uma análise de ementas da disciplina na graduação. 23º Enejor, Goiânia – GO, 2024


(4)   FRANCISCATO, C. E. Desafios para pensar a geração de conhecimento no campo do jornalismo. In: Congresso Brasileiro de Ciências Da Comunicação, Natal, 2008


(5)   VOGT, Carlos. A espiral da cultura científica. ComCiência: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, v. 45, p. 4-16, 2003.


(6)   TRINQUETE D. D. E.. La comunicación como proceso: un enfoque integrado en la implementación de las políticas de población. Novedades en Población, La Habana, v. 20, n. 39, p. 273–296, jan.-jun. 2024


(7)   TURIÁN, R. Cultura demográfica:  comunicación en población y procesos de difusión. DemoS, (009), 1996


(8)   RIBEIRO, A. T.; MARTINS, R. M.; JÚNIOR, J. L.; FREY, J. G.. Jornalismo de dados: conceitos, rotas e estrutura produtiva. Curitiba: Editora Intersaberes, 2018.


(9)   HEBERLÊ, A.; SOARES, F. Comunicação para o desenvolvimento: estratégias e conceitos. Estudos em Comunicação, v. 13, p. 151, 2013.


(10)  PRESTON, S. H. The Social Sciences and the Population Problem. In: STYCOS, J. M. (Ed.). Demography as an Interdiscipline. Transaction Publishers, 1989.


(11) RILEY, N. E.; MCCARTHY, J. Demografia na Era do Pós-moderno. Cambridge University Press, 2003.

Comentários


Post: Blog2_Post
bottom of page